Sade e
Sadismos
Guilherme
Kichel de Almdeida
Graduando em
História na UFRGS
Assim começa uma das principais
obras do Marquês de Sade, “120 dias de Sodoma”:
“Aconselho o leitor excessivamente recatado a por meu livro imediatamente
de lado, para não ficar escandalizado, pois é já evidente que não há muito de
casto em nosso plano, e atrevemo-nos desde já a garantir que o haverá ainda
menos na execução. E agora, leitor amigo, prepare seu coração e sua mente para
a narrativa mais impura já feita desde que nosso mundo começou, um livro sem
paralelos entre os antigos, ou entre nós, modernos...”
Além de
conseguir, imediatamente, a leitura de qualquer leitor vacilante; o livro trata
sobre assuntos deveras controversos. Resumidamente, conta a história de quatro
homens da alta sociedade francesa e que tem como gozo máximo, como o excelso
clímax, machucar, ferir e fazer/ver o outro sofrer, assim como, de vez em quando,
ser a vítima desses atos. Atos, que nós, seres humanos virtuosos e civilizados,
consideraríamos vis, danosos e humilhantes. São, na definição mais acertada do
termo, sádicos. No entanto, eles só
estavam atrás de algo que, de um jeito de outro, todo ser humano já desejou,
deseja ou vai desejar: ter prazer.
O prazer foi e ainda é algo presente
nas relações humanas. Desde muito cedo nossos queridos antepassados perceberam
sensações e práticas que lhes satisfaziam e potencializavam nossos próprios
sentidos. Experimentaram o mais puro deleite, quando não, a mais viva
euforia. Uma das primeiras correntes
filosóficas a levar o prazer individual e do ser humano a sério originou-se,
claro, na Grécia Antiga, sob o nome de “hedonismo” (do grego Hedoné, que significa “prazer”). O contexto histórico da época tem importante
papel para deduzirmos a lógica desses filósofos.
Duas escolas
antropocêntricas já tinham bastante influência nessa época (século V – IV a.c):
a socrática e a sofista. Ambas pregavam que o homem deveria conhecer a si mesmo
e assim seria possível alcançar a felicidade. Porém, para os sofistas o real
era o individual, assim, a realidade universal não passava de abstração, o
homem era mortal e a imortalidade, irreal. Visto que a única realidade, desse
modo, era a do homem e sua vida terrena, os hedonistas, representados por
Aristipo de Cirene, entenderam que o prazer era a finalidade última do ser
humano. Assim: “O hedonismo representa, pois, a ideologia de que as satisfações
pessoais do homem, seja de que natureza forem, são o supremo e único destino da
vida, devendo, por isto, ser procuradas na mais larga escala, para que o homem
seja integralmente feliz” (Rohden, 2008, p.66)
Infelizmente,
os hedonistas não tinham igreja, mandamentos, poder ou sequer um mísero papa
para fazer de sua ideologia a mais influente da Europa. Coube, como já estamos
estafados de saber, à Igreja Católica assumir esse papel, com sua moral
conservadora e que, sobretudo, via no prazer material ou, mais especificamente,
no prazer carnal algo danoso e negativo. Talvez um dos maiores inimigos dessa
moral, tenha sido o nosso amigo irritadiço, barbudo (óbvio!) e genial, Nietzche,
que disse (ao se referir à Igreja Católica): “Cristão é o ódio contra o espírito, contra o orgulho, a coragem, a
liberdade, a libertinage do espírito;
cristão é o ódio contra os sentidos,
contra as alegrias dos sentidos, contra a própria alegria...” (Nietzsche, 2013,
p.40).
Era com essa
moral, perdoem-me a simplificação, que o nosso principal personagem tinha que
conviver na virada do século XVIII para o XIX. Nessa época, Freud ou Nietzsche,
não estavam vivos, mas Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade,
estava e influenciaria não só a literatura e a psicanálise, como o próprio
cinema. Aliás, a influência de suas ideias e trabalhos na sétima arte, será o
tema deste texto nada prosaico.
A sua
relevância pode ser medida pelo uso, já extensivo, do termo “sadismo”, que,
portanto, provém do nome de “Sade”. Porém, qual seria, exatamente, a origem e o
sentido dessa palavra? O termo foi cunhado pelo psiquiatra alemão Richard Von
Kraft-Elbing, em 1886 e designava: “[...] uma perversão sexual – pancadas,
flagelações, humilhações físicas e morais – baseada num modo de satisfação
ligado ao sofrimento infligido ao outro” (PLON, 1998). Posteriormente, ao ser
retomado por Freud, foi classificado no quadro mais geral da teoria da
perversão e da pulsão que, além de outros atos, relacionava-se às perversões
sexuais. Nesse contexto, outro escritor foi acoplado à Sade (perdoem o
trocadilho): Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895), cuja principal obra: “A
Venus das Peles”, tem como personagem principal um jovem nobre, Severin, e, sua
amante, Wanda, viúva e também da nobreza. Perante a questão se seria possível o
homem e a mulher serem igualmente felizes na relação a dois, Severin sugere que
Wanda o escravize e ela acaba aceitando, ratificando o acordo com um contrato que coloca a vida do jovem namorado sob
seu controle. Feito esse resumo, podemos
entender, ainda que superficialmente, o termo sadomasoquismo.
O cinema,
especialmente na segunda metade do século XX, aproveitou-se dessa temática para
diversos fins, desde mexer com a imaginação e mesmo estimular o prazer sexual
de seus espectadores, questionar a estruturação das relações de gênero ou,
ainda, criticar regimes totalitários. Um dos diretores que foi largamente
inspirado pelo sadomasoquismo foi o
espanhol Jesús Franco (1930-2013). Comentaremos apenas um dos seus filmes
baseados nas obras de Sade: “Eugenie” (1970), que pode ser classificado, mais
acertadamente como “softporn”, uma categoria do pornô em que o ato sexual não é
filmado explicitamente. O maior nome do elenco, Christopher Lee foi, na
verdade, a primeira vítima do filme. Segundo ele, apenas o chamaram para gravar
as primeiras cenas em que atua como pai de Eugenie (Marie Liljedahl) e é seduzido
pela bela Marianne/Madame Saint Ange (Maria Rohm). Somente depois, saberia que
o filme possuiria tantas cenas de sexos quanto de diálogos. Marianne, em troca
de uma noite de prazer com Dolmance (Christopher Lee), pede a ele que libere
sua filha para passar uns dias na casa dela e de seu irmão, localizada numa
ilha. Atraída pela encantadora Madame, Eugenie aceita de bom grado a estadia na
ilha, sem saber que noites de abusos e violência estavam por vir. Aqui, a
principal relação com a obra de Sade vem do livro: “Justine ou as Desgraças da
Virtude”, em que uma jovem inocente e pura é corrompida pelos mais devassos e
pervertidos personagens.
Outra
película, em parte inspirada no mesmo livro, é: “Histoire D’o” (1975), filme
francês dirigido por Just Jaeckin. Do mesmo modo, uma garota jovem e atraente,
O. (Corinne Cléry) é levada, dessa vez por seu companheiro, Rene (Udo Kier), por
quem ela nutre uma paixão avassaladora, para um lugar em que sofreria abusos e
violência sexuais com o objetivo de dar prazer a outro homem ou o seu “dominador”.
Quando O. sai desse lugar “bizarro”, Rene a transfere para outro “dono”, seu
meio-irmão Stephen (Anthony Steel). O filme, se comparado com Eugenie (1970),
traz questões mais complexas, além de ter melhor qualidade cinematográfica. Nele,
a relação dominador/dominado gera constantes tensões, pois o dominado só está
nesse estado por sua própria escolha. Além disso, as mulheres, em geral, são as
personagens subjugadas e, ainda, parecem sentir prazer com torturas,
constrangimentos e abusos. Dessa forma, o filme se adéqua mais à obra de
Masoch, pois tem como elemento central a relação entre senhor/escravo, além de
levantar questões como o papel da mulher, não só na relação do casal como na
própria sociedade.
Deixamos por
último, talvez o filme mais perturbador desse trio: “Salò ou o 120 dias de
Sodoma” (1976), do diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Baseado no livro, já
citado, de Marquês de Sade: “120 dias de Sodoma”, a película é uma crítica
pesada ao regime fascista italiano. Ambientado no ano de 1944, a história se
desenrola no estado do norte italiano, Salò, que está controlado pelo regime
fascista. Os quatro personagens principais: Duque (Paolo Bonacelli), o Bispo
(Giorgio Cataldi), o Magistrado (Umberto Quintavalle) e o Presidente (Aldo
Valetti) mandam sequestrar e prender dezesseis adolescentes (oito meninos e
oito meninas) para submetê-los as mais perversas, angustiantes e tenebrosas
humilhações. As cenas são tão impactantes que muitas pessoas não conseguem
assistir o filme até o final ou mesmo desistem no início. Entre os momentos
mais fortes estão o consumo de fezes humanas e, quando as vítimas são
encoleiradas nuas, são obrigadas a se comportar como cachorros e servir seus
“donos”.
Portanto, as
críticas não só são ácidas, como a forma de fazê-las propõe-se a chocar os
telespectadores. De fato, o filme permite diversas comparações com o tipo
clássico do fascismo. Por exemplo, a ideia de controlar a vida das pessoas, sua
rotina, seus atos e mantê-las, sempre, subservientes a uma força hierárquica superior.
Para tanto, o cativeiro dos prisioneiros é governado por leis específicas e
qualquer indisciplina é punida com as mais severas e brutais sentenças. Mais do
que isso, a elite da prisão é retratada constantemente como sádica, o prazer ou
a sensação de poder proporcionado pela aflição alheia é, assim, razão e fim. No
entanto, mesmo nesse inferno, os escravos conseguiam realizar pequenas
insubordinações, burlar as regras e promover simbólicas e insuficientes
resistências, porém talvez tenha sido elas a fagulha que os tenha sustentado.
Espero que o
caráter introdutório desse texto tenha atiçado a curiosidade do leitor. A vida
tem tantas faces que seria impossível contá-las todas, quiçá julgá-las! Entre
elas está a sexualidade, tão complexa e rica quanto qualquer reflexão de Nietzsche
ou mesmo de Sade. Explorá-la e entendê-la, sempre respeitando a liberdade
alheia, é um processo que faz parte de uma humanidade mais lúcida, mais
solidária, mais livre.
Referências:
NIETZSCHE, Friedrich. O
Anticristo. Porto Alegre: L&PM,
2013.
PLON, Elisabeth Michel. Dicionário
de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ROHDEN, Huberto. O
pensamento filosófico da antiguidade. São Paulo: Martin Claret, 2008.
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