domingo, 17 de novembro de 2013

Texto


Sade e Sadismos

Guilherme Kichel de Almdeida

Graduando em História na UFRGS


Assim começa uma das principais obras do Marquês de Sade, “120 dias de Sodoma”:

“Aconselho o leitor excessivamente recatado a por meu livro imediatamente de lado, para não ficar escandalizado, pois é já evidente que não há muito de casto em nosso plano, e atrevemo-nos desde já a garantir que o haverá ainda menos na execução. E agora, leitor amigo, prepare seu coração e sua mente para a narrativa mais impura já feita desde que nosso mundo começou, um livro sem paralelos entre os antigos, ou entre nós, modernos...”

            Além de conseguir, imediatamente, a leitura de qualquer leitor vacilante; o livro trata sobre assuntos deveras controversos. Resumidamente, conta a história de quatro homens da alta sociedade francesa e que tem como gozo máximo, como o excelso clímax, machucar, ferir e fazer/ver o outro sofrer, assim como, de vez em quando, ser a vítima desses atos. Atos, que nós, seres humanos virtuosos e civilizados, consideraríamos vis, danosos e humilhantes. São, na definição mais acertada do termo, sádicos. No entanto, eles só estavam atrás de algo que, de um jeito de outro, todo ser humano já desejou, deseja ou vai desejar: ter prazer.

                O prazer foi e ainda é algo presente nas relações humanas. Desde muito cedo nossos queridos antepassados perceberam sensações e práticas que lhes satisfaziam e potencializavam nossos próprios sentidos. Experimentaram o mais puro deleite, quando não, a mais viva euforia.  Uma das primeiras correntes filosóficas a levar o prazer individual e do ser humano a sério originou-se, claro, na Grécia Antiga, sob o nome de “hedonismo” (do grego Hedoné, que significa “prazer”).  O contexto histórico da época tem importante papel para deduzirmos a lógica desses filósofos.

            Duas escolas antropocêntricas já tinham bastante influência nessa época (século V – IV a.c): a socrática e a sofista. Ambas pregavam que o homem deveria conhecer a si mesmo e assim seria possível alcançar a felicidade. Porém, para os sofistas o real era o individual, assim, a realidade universal não passava de abstração, o homem era mortal e a imortalidade, irreal. Visto que a única realidade, desse modo, era a do homem e sua vida terrena, os hedonistas, representados por Aristipo de Cirene, entenderam que o prazer era a finalidade última do ser humano. Assim: “O hedonismo representa, pois, a ideologia de que as satisfações pessoais do homem, seja de que natureza forem, são o supremo e único destino da vida, devendo, por isto, ser procuradas na mais larga escala, para que o homem seja integralmente feliz” (Rohden, 2008, p.66)

            Infelizmente, os hedonistas não tinham igreja, mandamentos, poder ou sequer um mísero papa para fazer de sua ideologia a mais influente da Europa. Coube, como já estamos estafados de saber, à Igreja Católica assumir esse papel, com sua moral conservadora e que, sobretudo, via no prazer material ou, mais especificamente, no prazer carnal algo danoso e negativo. Talvez um dos maiores inimigos dessa moral, tenha sido o nosso amigo irritadiço, barbudo (óbvio!) e genial, Nietzche, que disse (ao se referir à Igreja Católica): “Cristão é o ódio contra o espírito, contra o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinage do espírito; cristão é o ódio contra os sentidos, contra as alegrias dos sentidos, contra a própria alegria...” (Nietzsche, 2013, p.40).

            Era com essa moral, perdoem-me a simplificação, que o nosso principal personagem tinha que conviver na virada do século XVIII para o XIX. Nessa época, Freud ou Nietzsche, não estavam vivos, mas Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, estava e influenciaria não só a literatura e a psicanálise, como o próprio cinema. Aliás, a influência de suas ideias e trabalhos na sétima arte, será o tema deste texto nada prosaico.

            A sua relevância pode ser medida pelo uso, já extensivo, do termo “sadismo”, que, portanto, provém do nome de “Sade”. Porém, qual seria, exatamente, a origem e o sentido dessa palavra? O termo foi cunhado pelo psiquiatra alemão Richard Von Kraft-Elbing, em 1886 e designava: “[...] uma perversão sexual – pancadas, flagelações, humilhações físicas e morais – baseada num modo de satisfação ligado ao sofrimento infligido ao outro” (PLON, 1998). Posteriormente, ao ser retomado por Freud, foi classificado no quadro mais geral da teoria da perversão e da pulsão que, além de outros atos, relacionava-se às perversões sexuais. Nesse contexto, outro escritor foi acoplado à Sade (perdoem o trocadilho): Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895), cuja principal obra: “A Venus das Peles”, tem como personagem principal um jovem nobre, Severin, e, sua amante, Wanda, viúva e também da nobreza. Perante a questão se seria possível o homem e a mulher serem igualmente felizes na relação a dois, Severin sugere que Wanda o escravize e ela acaba aceitando, ratificando o acordo com um contrato que coloca a vida do jovem namorado sob seu controle.  Feito esse resumo, podemos entender, ainda que superficialmente, o termo sadomasoquismo.

            O cinema, especialmente na segunda metade do século XX, aproveitou-se dessa temática para diversos fins, desde mexer com a imaginação e mesmo estimular o prazer sexual de seus espectadores, questionar a estruturação das relações de gênero ou, ainda, criticar regimes totalitários. Um dos diretores que foi largamente inspirado pelo sadomasoquismo foi o espanhol Jesús Franco (1930-2013). Comentaremos apenas um dos seus filmes baseados nas obras de Sade: “Eugenie” (1970), que pode ser classificado, mais acertadamente como “softporn”, uma categoria do pornô em que o ato sexual não é filmado explicitamente. O maior nome do elenco, Christopher Lee foi, na verdade, a primeira vítima do filme. Segundo ele, apenas o chamaram para gravar as primeiras cenas em que atua como pai de Eugenie (Marie Liljedahl) e é seduzido pela bela Marianne/Madame Saint Ange (Maria Rohm). Somente depois, saberia que o filme possuiria tantas cenas de sexos quanto de diálogos. Marianne, em troca de uma noite de prazer com Dolmance (Christopher Lee), pede a ele que libere sua filha para passar uns dias na casa dela e de seu irmão, localizada numa ilha. Atraída pela encantadora Madame, Eugenie aceita de bom grado a estadia na ilha, sem saber que noites de abusos e violência estavam por vir. Aqui, a principal relação com a obra de Sade vem do livro: “Justine ou as Desgraças da Virtude”, em que uma jovem inocente e pura é corrompida pelos mais devassos e pervertidos personagens.

            Outra película, em parte inspirada no mesmo livro, é: “Histoire D’o” (1975), filme francês dirigido por Just Jaeckin. Do mesmo modo, uma garota jovem e atraente, O. (Corinne Cléry) é levada, dessa vez por seu companheiro, Rene (Udo Kier), por quem ela nutre uma paixão avassaladora, para um lugar em que sofreria abusos e violência sexuais com o objetivo de dar prazer a outro homem ou o seu “dominador”. Quando O. sai desse lugar “bizarro”, Rene a transfere para outro “dono”, seu meio-irmão Stephen (Anthony Steel). O filme, se comparado com Eugenie (1970), traz questões mais complexas, além de ter melhor qualidade cinematográfica. Nele, a relação dominador/dominado gera constantes tensões, pois o dominado só está nesse estado por sua própria escolha. Além disso, as mulheres, em geral, são as personagens subjugadas e, ainda, parecem sentir prazer com torturas, constrangimentos e abusos. Dessa forma, o filme se adéqua mais à obra de Masoch, pois tem como elemento central a relação entre senhor/escravo, além de levantar questões como o papel da mulher, não só na relação do casal como na própria sociedade.

            Deixamos por último, talvez o filme mais perturbador desse trio: “Salò ou o 120 dias de Sodoma” (1976), do diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Baseado no livro, já citado, de Marquês de Sade: “120 dias de Sodoma”, a película é uma crítica pesada ao regime fascista italiano. Ambientado no ano de 1944, a história se desenrola no estado do norte italiano, Salò, que está controlado pelo regime fascista. Os quatro personagens principais: Duque (Paolo Bonacelli), o Bispo (Giorgio Cataldi), o Magistrado (Umberto Quintavalle) e o Presidente (Aldo Valetti) mandam sequestrar e prender dezesseis adolescentes (oito meninos e oito meninas) para submetê-los as mais perversas, angustiantes e tenebrosas humilhações. As cenas são tão impactantes que muitas pessoas não conseguem assistir o filme até o final ou mesmo desistem no início. Entre os momentos mais fortes estão o consumo de fezes humanas e, quando as vítimas são encoleiradas nuas, são obrigadas a se comportar como cachorros e servir seus “donos”.

            Portanto, as críticas não só são ácidas, como a forma de fazê-las propõe-se a chocar os telespectadores. De fato, o filme permite diversas comparações com o tipo clássico do fascismo. Por exemplo, a ideia de controlar a vida das pessoas, sua rotina, seus atos e mantê-las, sempre, subservientes a uma força hierárquica superior. Para tanto, o cativeiro dos prisioneiros é governado por leis específicas e qualquer indisciplina é punida com as mais severas e brutais sentenças. Mais do que isso, a elite da prisão é retratada constantemente como sádica, o prazer ou a sensação de poder proporcionado pela aflição alheia é, assim, razão e fim. No entanto, mesmo nesse inferno, os escravos conseguiam realizar pequenas insubordinações, burlar as regras e promover simbólicas e insuficientes resistências, porém talvez tenha sido elas a fagulha que os tenha sustentado.

            Espero que o caráter introdutório desse texto tenha atiçado a curiosidade do leitor. A vida tem tantas faces que seria impossível contá-las todas, quiçá julgá-las! Entre elas está a sexualidade, tão complexa e rica quanto qualquer reflexão de Nietzsche ou mesmo de Sade. Explorá-la e entendê-la, sempre respeitando a liberdade alheia, é um processo que faz parte de uma humanidade mais lúcida, mais solidária, mais livre.

 Referências:

NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo.  Porto Alegre: L&PM, 2013.

PLON, Elisabeth Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

ROHDEN, Huberto. O pensamento filosófico da antiguidade. São Paulo: Martin Claret, 2008.

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