segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Everybody comes to Rick’s

“Everybody comes to Rick’s”. Algumas reflexões sobre a situação política mundial em Casablanca.

 Por Rafael Belló Klein
Mestrando em História na PUCRS

            O filme Casablanca é, sem a menor dúvida, o que podemos chamar de um clássico do cinema norte-americano e mundial.  Dirigido pelo húngaro-americano Michael Curtiz, em 1942, foi protagonizado por dois dos maiores ícones culturais do cinema internacional: Humphrey Bogart e a bela atriz sueca Ingrid Bergman. A película, vencedora de três prêmios do Academy Awards de 1943, incluindo o de Melhor Filme e o de Melhor Diretor para Curtiz, se não alcançou um estrondoso sucesso à época de seu lançamento (apesar de ter sido sim consideravelmente bem-sucedida), foi inúmeras vezes aclamada como uma das maiores já produzidas.

            As razões para um reconhecimento tal são muitas. Além das grandes atuações de Bogart e Bergman, cuja beleza é um atrativo à parte, são frequentemente mencionados a trilha sonora marcante, em especial a canção “As Time Goes By”, interpretada no filme pelo pianista Sam (Dooley Wilson), e o roteiro muito bem escrito – o qual, aliás, lhe rendeu o seu terceiro Oscar, o de Melhor Roteiro Adaptado –, permeado por diversos diálogos e frases memoráveis, desde o próprio verso de abertura de sua canção tema, “You must remember this...”, até aquela que encerra a película, “I think this is the beginning of a beautiful friendship.”

            Quero, no entanto, salientar aqui outro elemento que contribui vivamente para o sucesso do filme, o qual certamente não passa despercebido, especialmente aos olhos do historiador: o tumultuado contexto político internacional, que torna o ambiente exótico da cidade marroquina de Casablanca ainda mais cativante, povoado por personagens das mais diversas nacionalidades e personalidades.

            Apesar da pretensa e autoproclamada neutralidade do personagem Rick (Humphrey Bogart), a política é um tema que perpassa constantemente o filme, do início ao fim. Além da descoberta em meio à película da participação de Rick em dois conflitos armados (a invasão da Etiópia pela Itália em 1935, na qual negociou armas para os africanos, e a Guerra Civil Espanhola em 1936, pelo lado republicano – revelando assim uma propensão antifascista), a trama se desenrola em plena Segunda Guerra Mundial, em meio a um dos períodos mais obscuros da história europeia, o apogeu do domínio nazista na Europa continental. A deflagração do conflito, em setembro de 1939, deu-se, sabidamente, como uma reação à invasão da Polônia pelas tropas alemãs. No entanto, a política expansionista de Hitler já havia começado anteriormente, com Anschluss da Áustria, a anexação da região dos Sudetos e posteriormente a da Tchecoslováquia como um todo, em 1938, expansão esta (compartilhada pela Itália de Mussolini, que havia avançado sobre a Albânia) que foi assistida passivamente pelos demais países europeus, dentro da política de apaziguamento, visando evitar um confronto bélico aberto, tendo em vista as nefastas consequências econômicas, humanas e psicológicas da Primeira Guerra Mundial.

            Após um breve período de calma seguindo a derrocada polonesa, a ofensiva do Terceiro Reich, sob a forma da famosa tática do Blitzkrieg, a guerra relâmpago, tomou corpo no ano de 1940, com as subsequentes invasões de Dinamarca e Noruega, em abril, e de Holanda, Bélgica, Luxemburgo e França, em maio. Até 1942, as forças do Eixo invadiriam também a região dos Bálcãs, incluindo sob seu domínio Hungria, Bulgária, Romênia Iugoslávia e Grécia, atingindo, com o início da ofensiva sobre a Rússia, o seu máximo poderio territorial, tendo o controle, direto ou sobre a forma de Estados-satélites, de toda Europa Continental, à exceção dos países considerados neutros (Espanha, Portugal, Suíça, Suécia e Turquia).

            A conquista da França pelas tropas nazistas, que mais nos interessa aqui, foi um dos episódios mais traumáticos da história francesa. Tendo as tropas alemãs invadido a França em maio de 1940, através da Bélgica, flanqueando o ultrapassado sistema de defesa da Linha Maginot, acabaram por derrotar as forças francesas em pouco mais de um mês. A entrada dos nazistas em Paris em 14 de junho de 1940 foi um profundo golpe ao orgulho francês e aos seus ideais de civilização, aos olhos dos quais, os germânicos, sua cultura e seus métodos de guerra eram simplesmente bárbaros. Mais do que isso, significou a rendição da França poucos dias depois, através da assinatura de um armistício, por iniciativa do marechal Philippe Pétain, apesar da contrariedade de muitos soldados e civis, realizado em Compiègne, local significativamente escolhido por ter sido onde ocorreu o armistício que pôs fim à Primeira Guerra e que significou duras e humilhantes sanções à Alemanha; portanto, mais uma pancada no ferido orgulho francês.

            Além de prever a anexação das províncias da Alsácia e Lorena, tradicional objeto de disputa entre França e Alemanha, para esta última, as resoluções desse segundo armistício de Compiègne dividiram a França em duas: o governo francês mantinha o controle “simbólico” do país e de suas colônias, porém, na prática traçou-se uma linha em seu território, separando uma zona a norte e oeste, incluindo Paris, os portos do Atlântico e as regiões industriais do norte, à qual os nazistas reservaram-se o direito de ocupação; e outra ao sul e a leste, onde o governo francês manteve sua soberania, na forma do novo regime de Vichy, sob a liderança do Marechal Pétain.            A França de Vichy carrega consigo a pesada designação de colaboracionista, pois, de fato, apesar de ser um Estado nominalmente não-ocupado, empreendeu uma política de total colaboração com o Eixo, sendo na prática pouco mais que um Estado-satélite deste.

 

Os franceses e o pensar-duplo.

            É no contexto de uma Alemanha nazista caminhando a passos largos rumo ao seu apogeu territorial, e dessa França partida em duas que se desenrola a trama de Casablanca; e o personagem do capitão Louis Renault (Claude Rains) reflete bem a mentalidade de um francês diante de sua pátria dividida entre a ocupação nazista e o colaboracionismo.

            O historiador Pierre Laborie, ao tentar compreender como os franceses lidaram com a situação que lhes era apresentada – da derrota e divisão de sua nação e da adesão ou colaboração com o regime com o qual até então estavam em guerra –, e seus posicionamentos perante ela, aponta para a prevalência de uma cultura do duplo. Nas atitudes dos franceses sob Vichy, a ambivalência ocupou um papel de destaque:

As alternativas simples entre petanismo e gaullismo, resistência e vichismo ou resistência e colaboração fornecem apenas imagens redutoras das vivências dos contemporâneos. Sabe-se assim que uma maioria de franceses chorou a derrota sem desejar o armistício, que foram capazes de aplaudir fervorosamente o marechal Pétain enquanto rejeitavam o regime de Vichy, que conseguiram ser irredutivelmente hostis ao ocupante sem por isto se tornarem resistentes (...) (LABORIE, 2010: 38).

            Laborie identifica uma visão comum dos franceses sob Vichy, permeada por interpretações de ordem moral, que relacionava sua mentalidade a uma ambiguidade oportunista:

Falou-se da esquizofrenia dos franceses, mas também de seu profundo senso de acomodação e mudança brusca de atitude, de sua virtuosidade para se colocar a favor do vento, de sua inclinação à indecisão; viu-se nisso, um oportunismo calculista, duplicidade, cinismo, covardia (LABORIE, 2010: 38).

            Para o autor, no entanto, mais do que simplesmente por um cálculo cínico ou interesseiro, mas pelas imposições e ditames da situação política do momento, o pensar-duplo pertenceu efetivamente ao universo mental dos franceses sob Vichy. Seja por uma verdadeira simpatia por causas que ao final provaram ser antagônicas, mas que à época poderiam não ser percebidas assim; seja pela necessidade de ocultar uma face não condizente com o regime político ao qual estavam subordinados.

            O personagem Renault é um grande símbolo desse homem-duplo, de um modo de pensar ambíguo, embora se assemelhe mais à segunda descrição de Laborie, a permeada por um julgamento moral: um homem cínico, inescrupuloso, que tenta tirar vantagens pessoais diante da situação, que se admite como uma pessoa “sem convicções”, que “vai conforme o vento” (citações do próprio filme). Renault, no entanto, acaba revelando-se, ao final, um nacionalista, um patriota, simpatizante dos ideais de resistência ao nazismo, ao descartar simbolicamente os ideais vichistas, quando joga no lixo uma garrafa da famosa água de Vichy.

            A tensão percebida a cada diálogo entre Renault e o Major Heinrich Strasser (Conrad Veidt) demonstra bem a complicada situação em que o oficial francês se encontra e sua ambiguidade de pensamento. De fato, outro elemento a destacar no filme é em relação aos confrontos entre os nacionalismos francês e alemão, que naturalmente tenta suprimir as manifestações do primeiro. Há duas cenas emblemáticas a esse respeito: a discussão entre a personagem Yvonne (Madeleine LeBeau) e um soldado francês, pela moça estar acompanhada por um militar alemão; e a antológica cena em que os oficiais nazistas entoavam o Die Wacht am Rhein, tradicional canção nacionalista alemã (muito ligada à Primeira Guerra e à questão da defesa da fronteira natural do Reno), sendo sobrepujados pelo coro da Marselhesa, puxado por Victor Laszlo (Paul Henreid).

 

O Orientalismo em Casablanca.

            Tendo examinado um pouco das relações políticas em jogo naquele momento, cabe também considerarmos o espaço onde se desenrola a trama. A película nos apresenta uma rota de fuga de refugiados, opositores e perseguidos pelo nazismo, de uma Europa Ocidental sob o controle do Terceiro Reich: saindo de Paris e da zona de ocupação, em direção ao porto de Marselha, e daí navegando até o norte da África, para o importante porto de Oran, no território colonial da Argélia, e então, finalmente, para Casablanca no Marrocos francês.

            O Marrocos foi, ao longo do século XIX (e mesmo antes), alvo de disputa dos países europeus, nem tanto pelas oportunidades financeiras que o país proporcionava, mas principalmente por sua importância política e estratégica, visto que se situa na porta de entrada para o Mediterrâneo. Entretanto, sua inserção dentro do imperialismo europeu se deu tardiamente, quando comparada à chamada partilha da África. Henk Wesseling (1998: 365) chega a classificá-la como um epílogo desse processo, visto que as assinaturas dos principais tratados que fixaram as esferas de influência europeias na África Ocidental, Central e Oriental haviam se dado na década de 1890, ao passo que no Marrocos esta disputa se resolveu somente duas décadas depois.

            Não obstante seu caráter tardio, os debates, tensões e disputas que ficaram conhecidos como a “questão marroquina” foram de grande importância para as relações diplomáticas na Europa. Além da França, cujos interesses se relacionavam principalmente a assegurar a fronteira oeste da Argélia, quatro grandes potências se puseram em disputa pelo Marrocos: Espanha, por razões de proximidade e de relações comerciais e coloniais históricas, além de Inglaterra, Itália e Alemanha, cujas intenções eram mais no sentido de obstar a livre hegemonia francesa, dentro do complexo jogo de interesses imperialistas. Sendo resolvidas de modo relativamente tranquilo as disputas com Espanha, que, enfraquecida, contentou-se com uma pequena porção do norte marroquino, incluindo as cidades de Ceuta, Melilla e Tânger; e com Itália e Inglaterra, que receberam compensações, respectivamente o reconhecimento dos interesses italianos na Líbia, e o dos ingleses no Egito, além de estabelecer com o último o acordo diplomático conhecido como Entente Cordiale, o qual alterou substancialmente o quadro das relações internacionais europeias nos anos seguintes; a rivalidade franco-alemã foi a que tomou contornos mais dramáticos dentro da questão marroquina, mesmo que ao fim, os germânicos se contentassem igualmente com uma compensação territorial.

            As grandes consequências da questão marroquina para a Europa se expressaram no sentido da alteração da configuração diplomática do continente, pela superação da rivalidade histórica entre França e Inglaterra, por meio do acordo que estabeleceram com a Entente Cordiale, e pela exposição de tensões e ressentimentos imperialistas, em especial da França com o Império Alemão, que viriam a culminar na Primeira Guerra Mundial. O Tratado de Fez, em 1912, que estabelecia o Marrocos como um protetorado francês, significou para estes a consolidação do flanco ocidental argelino e a garantia do domínio sobre o Magreb; para os marroquinos, significou a subordinação aos franceses:

Na teoria, o Tratado de Fez estabeleceu um tipo de governo duplo no Marrocos. O sultão preservava suas prerrogativas de soberania, mas entregava o controle da justiça, defesa, relações exteriores e finanças. Não podia fazer nada sem o consentimento do general-residente francês. Reciprocamente, o último não podia fazer nada sem o consentimento do sultão, mas isso em grande parte era uma cláusula teórica. Na prática, o sistema de governo duplo acabou se tornando um sistema de governo direto da França. O estado marroquino sobrevivia apenas na forma. No conteúdo, tornou-se francês (WESSELING, 1998: 389).

            Um Marrocos sob o controle francês – sob o controle de Vichy a partir de 1940, como fica patente pelas representações do marechal Pétain nas paredes da cidade, é o cenário que nos é apresentado então no filme Casablanca. Vale ressaltar ainda o caráter exótico do ambiente marroquino onde se desenrola a trama, um dos elementos que tornam a película atraente, o qual podemos remeter a uma das faces do que Edward Said chamou de Orientalismo.

            Na elaboração deste conceito, Said parte da noção de que o binômio Ocidente-Oriente não tem uma existência física e geográfica real; mas são representações, resultados de elaborações históricas. Neste sentido, o Orientalismo seria um “estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre o ‘Oriente’ e (...) o ‘Ocidente’” (SAID, 2007: 29), um modo de pensar esse binômio, que pressuporia uma intrínseca superioridade europeia, ocidental. Apesar disso, o Orientalismo não seria algo desenvolvido apenas no plano das ideias. Teria sim um embasamento na realidade material da região dita oriental, e mais, na realidade das relações de poder e dominação que os europeus estabeleceram com ela:

Mas nada nesse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia. O Orientalismo expressa e representa essa parte em termos culturais e mesmo ideológicos, num modo de discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas, burocracias e estilos coloniais (SAID, 2007: 28).

            Muito ligado a uma “ideia de Europa” e, por conseguinte, a uma ideia do “Outro”, o Orientalismo foi ao mesmo tempo uma representação do “Oriente” e um discurso que embasou e legitimou o imperialismo europeu na Ásia e na África; representou um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente, a imposição de uma hegemonia cultural.

            Neste sentido, sem pretender esgotá-lo, cabe ressaltar dois aspectos do multifacetado conceito de Said que têm consequências para o filme. Em primeiro lugar, há que se destacar a prevalência de uma representação europeia acerca do que era o “Oriente”, seu ambiente, habitantes e cultura. Por meio de fontes variadas, desde relatos de viajantes até as experiências coloniais, construíram-se estereótipos, noções daquilo que seria o “tipicamente oriental”. Estas noções (deixando um pouco de lado sua vinculação a questões mais práticas da dominação imperial) acabaram por conceder ao “Oriente” uma tônica romântica, exótica:

O Oriente era praticamente uma invenção europeia e fora desde a Antiguidade um lugar de episódios romanescos, seres exóticos, lembranças e paisagens encantadas, experiências extraordinárias (SAID, 2007: 27).

            De fato, em Casablanca, um dos elementos que permeiam a atmosfera do filme é o exotismo do espaço onde se desenrola a ação. Vários elementos acentuam esse caráter: a música de abertura, que, antes de desembocar na Marselhesa, evoca uma atmosfera de aventura num país tropical; as breves cenas que mostram a cidade e seu comércio, com vendedores e artigos “tipicamente orientais”; a arquitetura do Rick’s (e de outras construções); a indumentária, os trajes “típicos” marroquinos; os narguilés que se entreveem em certas cenas, etc. Tudo isso denota ao filme um ar romântico de aventura e fascinação pelo exotismo oriental.

            Em segundo lugar, e fortemente ligado à primeira, destaca-se o já comentado elemento de dominação presente das representações orientalistas. Apesar dos elementos acima levantados serem inevitavelmente componentes importantes do filme, percebe-se o papel secundário que é dado à Casablanca e aos marroquinos. De fato, nenhum personagem “nativo” tem um papel principal. O máximo de contribuição que dão à trama é como empregados do estabelecimento de Rick. Eficientes e dedicados, sim; porém, nada mais do que secundários. Neste sentido, para os efeitos do filme, Casablanca parece mais ser uma adjacência colonial político-cultural de uma Europa imperial, uma mera extensão exótica do continente europeu, um cenário de luxo no qual os “ocidentais”, em seus chiques cafés e bares europeus instalados em pleno norte da África, dão continuação a suas relações, tramas e intrigas, sem dar muita importância ao que estas possam significar para os marroquinos, muito menos às preocupações próprias destes, os quais sequer figuram de modo relevante no filme. Casablanca é também, assim, um belo retrato cultural do Orientalismo, ou de algumas de suas manifestações.

 

Assim, as circunstâncias e determinações desse complexo e interessante contexto político internacional, brevemente referidas aqui, fazem com que se cruzem em Casablanca os destinos de um norte-americano expatriado, proprietário do mais bem-sucedido estabelecimento da alta boemia local; uma bela e romântica jovem norueguesa; um militante tchecoslovaco, herói e símbolo da resistência ao nazismo na Europa; um inescrupuloso militar francês, com ambíguas filiações ao governo colaboracionista; um alto oficial do exército alemão do Terceiro Reich; além de um talentoso pianista afro-americano, aproveitadores e “negociantes” ilegais italianos, e até um jovem casal de refugiados búlgaros. Enfim, personagens com as mais variadas trajetórias e origens – cuja multiplicidade confere um atrativo especial para o filme – e que se encontram nas areias, ou melhor, em um bar de uma “exótica” cidade marroquina. Pois, afinal, “todo mundo vai para o Rick’s”.

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