DO TEXTO QUE DESVELA À NUDEZ QUE
REVELA!
O DECAMERON DE BOCACCIO A PASOLINI
Cesar Augusto Barcellos Guazzelli
Professor da UFRGS
Decameron é a obra mais
conhecida de Giovanni Bocaccio (1313-1375) que, junto com Dante e Petrarca, é
considerado um precursor do Renascimento italiano. O nome é deriva do grego,
significando dez dias, que é tempo de duração da história. Ela ocorre durante o
grande surto de peste bubônica que atingiu as cidades italianas a partir de
1348, e o livro teria sido escrito entre 1348 e 1353.
Além de difundir o humanismo
precocemente, o Dacameron inova por ser em prosa, no vernáculo da época.
Faz uma crítica mordaz da sua época, salientando aspectos mais mundanos da
nobreza e do clero, assim como dos grupos abastados recentes, como os
comerciantes. Os aspectos mais relevantes são os temas amorosos, numa clara
oposição ao “amor cortesão” da cultura medieval; em Bocaccio predominam o desejo
sexual e as relações carnais. Advoga no texto os anseios femininos: “mulheres
que estas novelas lerem poderão obter prazer e útil conselho das coisas reconfortantes
que as narrativas mostram. Saberão aquilo que é conveniente fugir e, do mesmo
modo, aquilo que deve ser seguido.” Como o livro é dedicado às mulheres,
Bocaccio se desculpa pela linguagem de “excessiva liberdade” levando as
personagens femininas a dizer “coisas que não são as mais convenientes de
serem ditas”.
O livro inicia por uma descrição
muito realista da Peste Negra em Florença. Em meio ao caos da cidade, sete
amigas – Pampinea, Fiammetta, Filomena,
Emília, Lauretta, Neifile e Elisa – se juntam a três rapazes – Pamfilo,
Filóstrato e Dioneo – para um retiro de dez dias numa herdade afastada,
cercados de todos os luxos possíveis. Em cada um dos dez dias, ou jornadas, eram
contadas dez novelas, uma por cada conviva. Exceto a 1ª e a 9ª Jornada, existe
nelas uma temática própria: na 2ª e na 3ª, as novelas tratam de personagens que
alcançam seus desejos apesar de muitos contratempos que enfrentam ao longo das
tramas; a 4ª versa sobre amores que tiveram finais infelizes; a 5ª sobre
histórias que terminaram bem; a 6ª trata de presença de espírito e respostas
mordazes a perguntas ou ações capciosas; a 7ª sobre mulheres que enganaram seus
maridos com outros homens; a 8ª aborda burlas de maneira geral; a 10ª Jornada
lida com ações generosas com os outros em relação ao amor e também outros
assuntos. Cada novela contada é o eixo condutor que encaminha a seguinte, e
assim por diante.
Em 48
novelas, o tema é um caso de amor, de mulheres com desejos ardentes, e que pressupõem
prazer para ambos os parceiros: “vezes
sem conta satisfizeram os respectivos desejos” (2ª Novela, 2ª Jornada); “Logo entraram no leito e ali conheceram os
prazeres máximos do amor” (5ª Novela, 3ª Jornada); “Os dois auferiram, um do outro, grande prazer e intenso deleite” (6ª
Novela, 3ª Jornada); “A mulher e seu
amante entregaram-se amiúde às carícias; o seu amor e os seus prazeres
prosseguiram sempre, cada vez melhores” (10ª Novela da 5ª Jornada).
O autor
usa de metáforas primorosas para evitar expressões chulas: “diziam a verdade ao esclarecerem que era coisa suave o servir a Deus”
(10ª Novela, 3ª Jornada); “naquela
posição em que, nos grandes campos, os cavalos livres, levados pelo amor,
assaltam as éguas” (3ª Novela, 7ª Jornada); “para lhe ensinar como se reza o padre-nosso; não somente um
padre-nosso, mas talvez uns quatro” (4ª Novela, 7ª Jornada). Algumas destas
alegorias são dirigidas aos órgãos sexuais, como estas: “cavalgando a fera de São Bento, ou então de São Gualberto” (4ª
Novela, 3ª Jornada); “Ricardo engaiolou o
rouxinol, de dia e de noite”, (4ª Novela, 5ª Jornada). Merece destaque a
10ª Novela da 3ª Jornada, na qual uma simplória beata enganada por um “santo” eremita
tornou-se insaciável: “se o seu diabo já
está castigado, e não mais lhe causa aborrecimentos, o caso é que a mim, o meu
inferno não me deixa sossegada”.
O
adultério feminino é o tema de 23 histórias, sendo sempre justificado. Pode ser
pelo mero apelo sexual: “Como acontece,
com muita frequência, que um homem não pode comer sempre o mesmo alimento, e
como ele quer variar, também isso se deu com a tal mulher” (6ª Novela, 7ª
Jornada). Casos de insatisfação são frequentes: “era dessas que têm necessidade de dois maridos, não de um” (10ª
Novela, 5ª Jornada); “vivo pouquíssimo
satisfeita com aquilo de que as mulheres jovens mais prazer auferem” (9ª
Novela, 7ª Jornada). Os maridos possessivos mereciam castigo: “acho bem feito o que lhes fazem as mulheres
dos ciumentos” (5ª Novela, 7ª Jornada); “se
ele recebeu e tomou de mim aquilo de que necessitava, e que era do seu agrado,
que devo eu fazer com a sobra? Devo atirar aos cães?” (7ª Novela, 6ª
Jornada).
Mas os maridos em geral agiam com
complacência: “se creio que minha esposa se entrega a qualquer aventura, ela
se entrega mesmo; se não creio, ela entrega-se do mesmo modo” (9ª Novela,
2ª Jornada); “concedeu-lhe licença para fazer o que quisesse, com a condição
de que o fizesse de modo tão hábil que ele nada percebesse” (4ª Novela, 7ª
Jornada). Há um único caso de triângulo amoroso: “o rapaz foi visto na
praça, sem muita certeza a ter acompanhado, naquela noite, o marido ou a
mulher” (10ª Novela, 5ª Jornada); também relação a quatro entre dois
casais: “cada uma daquelas duas mulheres teve dois maridos, e cada um
daqueles homens teve duas esposas” (8ª Novela, 8ª Jornada).
As histórias são também críticas
sociais. Em 13 novelas aparecem referências à prepotência da nobreza: “querem
ser chamados de gentis-homens, terem o nome de senhores e consideração de bem
reputados, ainda que sejam a vergonha para os costumes de nossa época” (8ª
Novela, 1ª Jornada); “Os sumos imperadores e os grandes monarcas quase não
exercitam outra arte senão a de matar” (3ª Novela, 10ª Jornada). A
burguesia ascendente é criticada em 33 das novelas – 26 delas voltadas para os comerciantes
– pela sua cupidez. Por exemplo, “concidadãos, que estudam em Bolonha,
regressam ao nosso convívio, ora na qualidade de juiz, ora de médico, e ás
vezes de notários” (9ª Novela, 8ª Jornada); “é coisa sabida que a
artimanha tanto mais agrada quanto mais sutil é o esperto por ela enganado” (10ª
Novela, 8ª Jornada).
Há onze histórias envolvendo o
clero. Importa frisar que Bocaccio mostra tolerância com outras religiões: “Cada
povo considera que é possuidor de sua herança, de sua legítima lei e de seus
mandamentos. Entretanto, quem está com a razão?” (3ª Novela, 1ª Jornada).
Por outro lado, desprezava a hipocrisia dos eclesiásticos. Sobre o Vaticano
afirma: “não me parece ver ali qualquer santidade, nem qualquer doação, nem
qualquer obra pia nem exemplo de vida decente, em pessoa de clérigo” (2ª
Novela, 1ª Jornada); também acerca das práticas cristãs: “a hipócrita
caridade fradesca que dá aos pobres o que deveria ser atirado aos porcos” (7ª
Novela, 1ª Jornada). Assim, a atividade sexual dos padres não aparece como
pecado, e eles se justificam com sofismas notáveis: “a santidade não
diminuída por causa disto; a santidade está na alma; o que lhe peço é pecado de
corpo” (8ª Novela, 3ª Jornada); outro frade diz “não afirmo que não seja
pecado, mas pecados ainda maiores Deus perdoa”, e mais tarde sustenta que “quando
eu despir este hábito aparecerei aos seus olhos como um homem igual aos outros”
(3ª Novela, 7ª Jornada); outro religioso ainda se gaba afirmando: “sim,
sabemos fazer essas coisas melhor do que ninguém” (2ª Novela, 8ª Jornada).
O filme Decameron de Pier
Paolo Pasolini estreou em 1971 obtendo prêmios, mas também muitas críticas pela
“obscenidade” de muitas cenas. O que fora insinuado em Bocaccio apareceu
explicitamente no filme, como a nudez dos personagens com ênfase nos órgãos
genitais, durante as relações sexuais. Pasolini também sua versão do Decameron
para trazer à tona graves questões sociais, atacar a hipocrisia da Igreja,
os políticos conservadores e a ambição da burguesia. A defesa da liberdade
sexual tem a ver com sua homossexualidade, que o fazia vítima de preconceitos e
discriminações.
O filme apresenta de nove histórias.
A primeira delas é a 5ª Novela da 2ª Jornada, intitulada “Os perigos de
Nápoles”. O ingênuo Andreuccio, vindo de Perugia para comprar cavalos, foi
vítima de uma prostituta farsante e de dois bandos de ladrões, mas conseguiu
recuperar o dinheiro que havia perdido. Segue-se a notável história de “O
jardineiro do convento”, 1ª Novela da 5ª Jornada; o jovem Masetto fingindo-se
de mudo consegue trabalho num convento, tornando-se atração sexual para todas
as freiras, incluindo a madre superiora. A exposição frontal das vulvas das
freiras erguendo seus hábitos, assim como o pênis ereto do jardineiro, geraram
comentários indignados. Numa das mais pícaras – a 2ª da 7ª Jornada, chamada “De
qualquer maneira” – a esperta Peronella, esconde o amante num tonel, e convence
o esposo de que ele é um comprador que está examinando o barril; na sequência, obriga
o marido a limpá-lo, enquanto recebe o amante por trás. Estas três novelas
estão “amarradas” por um fio condutor, a 1ª Novela da 1ª Jornada, “O trespasse
de um pecador”: Ciappeletto, um grande pecador, engana um padre de boa fé com
uma confissão falsa, sendo considerado santo após a morte. Trechos desta
história são intercalados àquelas três, todas elas mostrando uma excelente
reconstituição histórica.
A 5ª Novela da 6ª Jornada, “A sertã
e o caldeirão”, serviu de guia para outras quatro. O texto de Bocaccio era
muito simples, narrando um episódio do grande pintor renascentista Giotto.
Pasolini transforma esta passagem numa viagem a Nápoles de um aprendiz de
Giotto, contratado para realizar afrescos na Igreja de Santa Clara. Trechos da
jornada e do trabalho se intercalam com as demais novelas. “O cantar do
rouxinol”, 4ª Novela da 5ª Jornada é sobre o encontro de Ricardo e Caterina,
que dormia num balcão da casa para ouvir o canto do rouxinol; de manhã o pai
surpreende os amantes dormindo nus, com o “rouxinol” do rapaz preso pela mão de
Caterina. Bem trágica é a 5ª Novela da 4ª Jornada, chamada “O manjericão”: os
irmãos da jovem Isabetta matam seu amante, que em sonhos revela à amada onde
foi sepultado; ela desenterra o corpo, separa a cabeça e a coloca num vaso de
manjericão, junto ao qual passa chorando. Segue-se “Os dois estúpidos”, a
divertida 10ª Novela da 9ª Jornada: o padre Gianni convence Pietro e a esposa
de que pode transformá-la numa égua, para trabalha durante o dia. Para tanto,
precisa realizar um encantamento com a mulher nua, e o feitiço se completaria
só com a colocação de uma “cauda”, o que faz à vista do marido. A última
narrativa e “As impressões do além...”, 10ª Novela da 7ª Jornada: os amigos
Tignoccio e Meuccio desejam a comadre do primeiro, que obteve sucesso no
assédio. Tignoccio morreu pouco depois, e o amigo temia que fosse castigo
divino; vindo do além para contar a Meuccio como eram suas penas, informou que
dormir com a comadre não era pecado, fazendo com que o amigo renunciasse à
castidade com suas muitas comadres.
Ao final, de certa forma recuperando
as Despedidas que no livro encerravam cada Jornada, o pintor discípulo de
Giotto termina sua obra, admirando a beleza de seus afrescos. Como o artista
foi representado no filme pelo próprio Pasolini, é clara a analogia que faz
entre a ficção e a realidade; ou seja, ele como diretor estava muito
recompensado pelo resultado de sua obra. A semelhança que ele mesmo se atribuiu
a Bocaccio, quebrando convenções sociais e estéticas, cobra sentido. As dessemelhanças,
em especial a malícia no jogo das palavras do renascentista e a crueza mostrada
no cinema de Pasolini, não diminuem a qualidade da obra; ao contrário,
atualizam o tema do amor e do sexo, as interdições e busca de liberdade em cada
tempo histórico.