AS VAMPIRAS DO CASTELO DE DRÁCULA: UM
ESTUDO DE GÊNERO
Duda Falcão
Escritor e Professor de História
Na década de 60 do século passado, havia um
forte engajamento político
que buscava se libertar
da opressão de uma sociedade
em que
a hegemonia política ,
social e cultural era privilégio
usufruído, em sua
esmagadora maioria , pelos
homens . Para isso se fazia necessário construir uma história
em que
as mulheres fossem não
apenas meras coadjuvantes e, sim , participassem ativamente
da história, ocupando o papel de protagonistas . Segundo Joan Scott, naquela década “as feministas reivindicavam uma história
que estabelecesse heroínas ,
prova da atuação
das mulheres , e também
explicações sobre
a opressão e inspiração para a ação ”. Nesse sentido, as
mulheres seriam heroínas capazes de alterar , modificar e reescrever a história por meio de suas ações .
Somente nos anos 80 a
história das mulheres rompeu definitivamente com a política, rumou para um
campo próprio e passou a utilizar o termo gênero com aparente neutralidade.
Segundo Scott, houve nesse processo uma mudança na forma de se contar a
história das mulheres desde o ativismo feminista. Tal mudança foi alcançada
pela utilização do termo gênero como ferramenta mais apropriada para analisar a
história da mulher, mais objetiva, mais integradora e alicerçada na
legitimidade acadêmica.
As identidades sexuais se constroem de maneira
diversa , nas diferentes
culturas e em
períodos históricos
distintos . Porém ,
é fato que se constituem juntas , em maior ou menor medida , em qualquer sociedade . Não se
encontrará sentido em
uma leitura de gênero
se os papéis de homens e mulheres não
forem contrapostos ou justapostos.
Diante de um processo
dinâmico e constante ,
conforme Guacira Lopes Louro, as práticas
masculinizantes e feminizantes formam identidades
aprendidas, formatadas, reguladas, estereotipadas, incluídas e excluídas das instituições sociais .
O livro , tal
qual uma instituição ,
também carrega valores
generificados. Na literatura de Bram Stoker,
especificamente em Drácula, pretendo analisar algumas relações sociais
de gênero , que
ajudem a pensar como
era vista
a mulher e o homem
na Inglaterra do século XIX.
Bram Stoker, quando escreve Drácula, utiliza uma fórmula de sucesso
que se consagra com
o romantismo : seus
personagens escrevem diários , cartas ,
gravam relatos e também leem reportagens
de jornais . Com
essa técnica de escrita ,
o autor arquiteta
uma atmosfera de realidade
para aquilo que faz parte
de um universo ,
além de ficcional, sobrenatural .
O leitor tem a sensação
de que está em
contato com
o “real ”.
É para a Transilvânia, no início
da narrativa , que
viaja Jonathan Harker. Território no
centro-norte da Romênia, no lado oriental europeu . Um lugar de natureza selvagem , bela e desconhecida .
Harker, ao entrar no trem
que o levará a esse
destino , escreve em
seu diário :
“Tive então a impressão que o
Ocidente ficara para
trás e que
agora entrávamos no Oriente .
(...) Em nenhuma das obras e mapas
consultados me foi possível
estabelecer a exata
localização do Castelo
de Drácula (...). Já li alhures a afirmação de que
todas as superstições existentes neste mundo se originam do arco
formado pelos Cárpatos, como se lá
convergissem todos os vórtices das mais
férteis imaginações.”
O Oriente é tido por Harker, um corretor de imóveis ,
como o lugar
do desconhecido , do estranho ,
do sobrenatural , do supersticioso
e do bárbaro . Ele
descreve os homens e mulheres que encontra em sua viagem até o castelo :
“As mulheres em geral eram
graciosas, exceto quando
observadas de perto . Tinham a cintura deselegante e muito
volumosas. (...) As figuras étnicas mais estranhas eram representadas pelos
eslovacos, que formavam um aglomerado
de aspecto muito
mais bárbaro
(...) aparentemente nada
afáveis . Vistos
sobre um
palco , seriam imediatamente
identificados no papel de um
bando de antigos
salteadores orientais .
No entanto , como
vim a saber em
seguida , trata-se de gente de hábitos
acentuadamente pacatos e talvez carente
de uma mais natural
autoafirmação.”.
As mulheres do povo foram pouco
descritas por Harker, quando vistas
de perto não
agradaram seu gosto
estético pelo
aspecto de deselegância dos corpos
volumosos . Para
serem belas, talvez devessem apresentar cinturas mais
delicadas e delgadas, o que surtiria no
personagem um sentimento de graciosidade. Quanto
aos homens, Jonathan Harker os identificou com aspecto bárbaro, como se fossem ladrões
de estrada . Faltava uma
natural-afirmação aos pacatos moradores da Romênia. Percebe-se que Jonathan, um viajante inglês, durante
a caracterização que
faz dessas pessoas demonstra valores e ideais
da sua própria
cultura, uma cultura ocidental,
racional, produto do iluminismo, da revolução industrial e centrada na superioridade do homem
sobre a mulher ,
do inglês branco
sobre outras etnias.
Nesse estágio da narrativa, Jonathan
Harker ainda não
sabe, mas enviará para
Londres o conde Drácula, um vampiro maligno , uma infecção , um flagelo .
Londres, uma das grandes capitais da Europa, participante do projeto das luzes ,
território Ocidental
rumo à higienização, à escolarização, à normalização,
à libertação de doenças
e de calamidades . O outro ,
o mal , vem do Oriente
para infestar , corromper e desordenar .
“A afirmação da identidade implica sempre
a demarcação e a negação
do seu oposto ,
que é constituído como
sua diferença .
Esse ‘outro ’
permanece, contudo , indispensável .
A identidade negada é constitutiva do sujeito , fornece-lhe o limite e a
coerência e, ao mesmo
tempo , assombra-o com
a instabilidade.”
Drácula é descrito com olhos dotados
de um intenso
brilho , a boca de um aspecto cruel, lábios extremamente
vermelhos , dentes
muito afiados
de uma brancura de marfim , bigode e barba ,
face aquilina , arcada
nasal bastante
fina , orelhas
pontiagudas na parte superior , mandíbula
larga e forte ,
mãos brancas com uma tenaz de aço, aspecto tosco e pesado, extremidades dos dedos
achatadas e deformadas, tufos pilosos no centro
da palma , unhas
longas e pontiagudas, mau hálito
e extraordinária palidez .
As três vampiras eram jovens , damas
do mais fino
trato. Elas possuíam dentes de um branco fulgurante que se assemelhava a pérola, lábios
rubros e voluptuosos dos quais Harker compulsoriamente implorou beijos , risada
argentina e musical de intolerável percussão . Duas delas tinham tez
escura , nariz
aquilino , olhos
grandes e matizados de vermelho .
A terceira era
de rara beleza ,
de acordo com
Harker “o que de mais
belo possa se imaginar ”,
cabelos longos
e dourados , lindos
olhos de tom
safira . Hálito
doce e cálido ,
boca que
“ressumava um sabor
amargo , um
gosto acre ,
que tresandava a sangue ”,
e nos olhos
desvairada voluptuosidade .
Segundo Guacira Lopes Louro “ as práticas discursivas fazem com que
aspectos dos corpos se convertam em definidores de gênero e de sexualidade e,
como consequência, acabem por se converter em definidores dos sujeitos”. A
partir da narrativa de Stoker é possível averiguar as diferenças entre Drácula
e as vampiras. A boca de Drácula tem um aspecto cruel , enquanto
a das vampiras é rubra e voluptuosa,
indicando um caráter
de sedução do qual Harker não escapa. Drácula tem na mão
uma tenaz de aço ,
atributo de força .
Possui mau hálito ,
mãos asquerosas e unhas
pontiagudas. Sua descrição
beira o limite
entre o humano
e o monstruoso. Drácula é forte , asqueroso e cruel .
As vampiras, belas, sedutoras e perigosas.
Stoker escreveu Drácula, no século
XIX. Inserido nesse contexto cultural e
histórico, os personagens que ele criou
correspondiam a modelos desejados e a modelos que a
sociedade civilizada deveria combater . As vampiras
do castelo possuíam uma sexualidade
perigosa de “desvairada voluptuosidade ” que
não correspondia ao papel
de uma mulher decente, capaz de cuidar do homem e educar os filhos dentro
de preceitos da moral
e dos bons costumes
da época .
Em relação a discursos da moral, da lei e da igreja para disciplinar a
sexualidade, é interessante essa observação de Andrezza Rodrigues sobre o que
marca o sexo no século XIX:
“é justamente o fato
de se falar sobre
ele como
em nenhum
outro século ;
o sexo foi estudado e medido e
produziu-se uma literatura do sexo
correto , medicalizado. Cria-se em seu entorno
uma biologia da reprodução ,
esta caindo para um
campo de outros
poderes vindouros ,
como o medo
do mal venéreo
e deste para a higiene.”
A literatura , além
de um prazer ,
um passatempo
ou diversão ,
dependendo é claro de quem lê ,
promoveria também a moralização da sociedade . Um livro de horror ,
repleto desses discursos ,
através do medo ,
do grotesco , do impuro ,
da imundície e do bizarro ,
seria capaz de barrar ,
tolher e coibir , ao menos em parte , ações que não
correspondessem à moral vigente.
Antes que Harker seja consumido pela sede de sangue das três vampiras, Drácula intervém com violência. Para conter
o ímpeto selvagem
de suas concubinas
dá a elas um
presente . Essa passagem
é descrita no Diário de Jonathan assim :
“(...) um saco que fora
lançado sobre o assoalho
e dentro do qual
algo se debatia, como
se nele ocultasse alguma coisa viva .
(...) Uma das mulheres se adiantou e
abriu o pequeno fardo .
Se meus ouvidos
não me
enganaram, percebi vindo de lá um débil suspiro , acompanhado
de um gemido ,
como se se tratasse de uma criança semiasfixiada. Num instante ,
as três mulheres
formaram uma roda , enquanto
eu estremecia de horror ”.
Considero essa cena uma pista muito interessante para a própria origem
do mito do vampiro .
Decorre de um passado
remoto , do nascimento das primeiras civilizações , mais
precisamente no Crescente
Fértil . Três
demônios femininos
podem estar conectados a essa origem :
Lamastu, demônio acadiano ,
responsável pelas doenças
infantis; Lilitu, demônio da babilônia,
representante da noite ; e Lilith. Lilith
corresponde a duas tradições , à popular judaica ,
do Antigo Testamento ,
e à do Talmude . Na primeira ,
é conhecida como
a noturna e considerada um fantasma sugador de sangue .
Na segunda , é vista
como um
ser maligno e
a primeira mulher
de Adão. Seu animal
sagrado é a coruja .
Agrupando algumas características importantes das três
figuras temos: a ligação
com a coruja ,
a noite , a propriedade
de disseminar doenças
infantis e sugar sangue .
A mulher , na antiguidade ,
seria vista como
a responsável pela
vida dos recém-nascidos e das crianças . Quando
a morte de uma criança
ocorria, um demônio
feminino era
o causador . Essa explicação
diminui a responsabilidade de uma mãe , até mesmo de um pai , mas
continua sendo a mulher a fonte
da culpa . As mulheres ,
nesse contexto , também
estão associadas à noite , naquilo que é a inversão
do dia , e à falta
dos bons valores .
As vampiras do castelo são
uma representação desse estigma , desse mal ,
dessa corrupção .
As lâmias da antiga Grécia parecem
ter herdado alguns
desses elementos : raptavam crianças e sugavam seu
sangue . Possuíam um
corpo horrível ,
a metade superior
mulher e a metade
inferior serpente ,
um ser híbrido . Outros
relatos dizem que elas
adquiriram o poder de se transformar
em belas mulheres
e passaram a seduzir homens
jovens . Ou seja, seduzir homens jovens e
beber o sangue
de crianças foi exatamente
o papel atribuído às concubinas
de Drácula.
A cultura em
torno desses três
demônios femininos
se alastra pela Grécia e pela Roma antiga .
Com o passar
do tempo , na Europa Medieval
e Moderna , outros
seres bizarros
criados pela
imaginação popular
vão delineando o que
viria a ser o vampiro
moderno , tipo
de personagem consagrado por Bram Stoker.
Jonathan Harker continua seu relato,
depois de ter
sobrevivido àquele encontro :
“seria o meu próprio
corpo lugubremente banqueteado, num festim bem semelhante , pelas três
fúrias , também
ávidas de sangue ”. Stoker invoca ao
texto a figura das fúrias, personagens mitológicas que em Roma, segundo o
pesquisador Manfred Lurker eram nomeadas assim:
“Alecto (a
impiedosa), Tisífone (a que vinga os assassinatos), e Megera (a invejosa). Com
suas cabeças adornadas por serpentes, manipulando tochas ameaçadoras,
levantavam-se do mundo inferior para perseguir todos os pecadores (...). Em
Roma eram conhecidas como Furiae (loucas)”.
Loucas, invejosas, vingativas e impiedosas, assim eram as Furiae. As
vampiras do castelo, assim como outras mulheres monstruosas ou demoníacas da
mitologia, carregam em si todo o mal , todo o pecado . Suas características de gênero
são construídas a partir
da cultura e da história ,
através do tempo
e dos diferentes espaços
geográficos .
Em Drácula, mulheres e homens da Inglaterra vitoriana se veem diante de
um mal terrível e monstruoso, o outro, criatura desconhecida e ameaçadora que
vem do Oriente para infectar o Ocidente cristão, branco, racional e patriarcal.
Essa é uma obra que deve frequentar a cabeceira daqueles que apreciam uma boa
leitura. E, também, daqueles que gostam de investigar o cotidiano de uma época,
suas representações e relacionamentos de gênero.
Sugestões de Leitura
BURKE, Peter
(org). A escrita da história: novas
perspectivas. SCOTT, Joan. História
das mulheres. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.
LOURO, Guacira
Lopes. Gênero, História e Educação: construção e desconstrução. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.
20, n.2, jul./dez. 1995, p. 101-132.
_______ Um corpo estranho – ensaios sobre a
sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
LECOUTEX,
Claude. História dos vampiros: autópsia
de um mito. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
LURKER, Manfred.
Dicionário de deuses e demônios. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
MELTON, J.
Gordon. O livro dos vampiros: a
enciclopédia dos mortos-vivos. São Paulo: Makron Books, 1995.
RODRIGUES. Andrezza
Christina Ferreira. Drácula, um vampiro
vitoriano: O Discurso Moderno no Romance de Bram Stoker. Texto integrante
dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão.
ANPUH/SP – USP. 08 a
12 de setembro de 2008.
STOKER, Bram. Drácula. São Paulo: Círculo do Livro,
1988.
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