domingo, 6 de outubro de 2013

AS VAMPIRAS DO CASTELO DE DRÁCULA


AS VAMPIRAS DO CASTELO DE DRÁCULA: UM ESTUDO DE GÊNERO

Duda Falcão

Escritor e Professor de História

Na década de 60 do século passado, havia um forte engajamento político que buscava se libertar da opressão de uma sociedade em que a hegemonia política, social e cultural era privilégio usufruído, em sua esmagadora maioria, pelos homens. Para isso se fazia necessário construir uma história em que as mulheres fossem não apenas meras coadjuvantes e, sim, participassem ativamente da história, ocupando o papel de protagonistas. Segundo Joan Scott, naquela década “as feministas reivindicavam uma história que estabelecesse heroínas, prova da atuação das mulheres, e também explicações sobre a opressão e inspiração para a ação”. Nesse sentido, as mulheres seriam heroínas capazes de alterar, modificar e reescrever a história por meio de suas ações.

Durante a década de 70, de acordo com Scott, “a história das mulheres afastou-se da política”, de maneira que ampliou “o seu campo de questionamentos, documentando todos os aspectos da vida das mulheres no passado (...)”. Constitui-se, assim, uma nova maneira de se pensar e analisar o papel da mulher durante a história.

Somente nos anos 80 a história das mulheres rompeu definitivamente com a política, rumou para um campo próprio e passou a utilizar o termo gênero com aparente neutralidade. Segundo Scott, houve nesse processo uma mudança na forma de se contar a história das mulheres desde o ativismo feminista. Tal mudança foi alcançada pela utilização do termo gênero como ferramenta mais apropriada para analisar a história da mulher, mais objetiva, mais integradora e alicerçada na legitimidade acadêmica.

As identidades sexuais se constroem de maneira diversa, nas diferentes culturas e em períodos históricos distintos. Porém, é fato que se constituem juntas, em maior ou menor medida, em qualquer sociedade. Não se encontrará sentido em uma leitura de gênero se os papéis de homens e mulheres não forem contrapostos ou justapostos.

Diante de um processo dinâmico e constante, conforme Guacira Lopes Louro, as práticas masculinizantes e feminizantes formam identidades aprendidas, formatadas, reguladas, estereotipadas, incluídas e excluídas das instituições sociais. O livro, tal qual uma instituição, também carrega valores generificados. Na literatura de Bram Stoker, especificamente em Drácula, pretendo analisar algumas relações sociais de gênero, que ajudem a pensar como era vista a mulher e o homem na Inglaterra do século XIX.
 
 

 

Bram Stoker, quando escreve Drácula, utiliza uma fórmula de sucesso que se consagra com o romantismo: seus personagens escrevem diários, cartas, gravam relatos e também leem reportagens de jornais. Com essa técnica de escrita, o autor arquiteta uma atmosfera de realidade para aquilo que faz parte de um universo, além de ficcional, sobrenatural. O leitor tem a sensação de que está em contato com o “real”.

É para a Transilvânia, no início da narrativa, que viaja Jonathan Harker. Território no centro-norte da Romênia, no lado oriental europeu. Um lugar de natureza selvagem, bela e desconhecida. Harker, ao entrar no trem que o levará a esse destino, escreve em seu diário:

“Tive então a impressão que o Ocidente ficara para trás e que agora entrávamos no Oriente. (...) Em nenhuma das obras e mapas consultados me foi possível estabelecer a exata localização do Castelo de Drácula (...). li alhures a afirmação de que todas as superstições existentes neste mundo se originam do arco formado pelos Cárpatos, como se convergissem todos os vórtices das mais férteis imaginações.”

O Oriente é tido por Harker, um corretor de imóveis, como o lugar do desconhecido, do estranho, do sobrenatural, do supersticioso e do bárbaro. Ele descreve os homens e mulheres que encontra em sua viagem até o castelo:

 

“As mulheres em geral eram graciosas, exceto quando observadas de perto. Tinham a cintura deselegante e muito volumosas. (...) As figuras étnicas mais estranhas eram representadas pelos eslovacos, que formavam um aglomerado de aspecto muito mais bárbaro (...) aparentemente nada afáveis. Vistos sobre um palco, seriam imediatamente identificados no papel de um bando de antigos salteadores orientais. No entanto, como vim a saber em seguida, trata-se de gente de hábitos acentuadamente pacatos e talvez carente de uma mais natural autoafirmação.”.

 

As mulheres do povo foram pouco descritas por Harker, quando vistas de perto não agradaram seu gosto estético pelo aspecto de deselegância dos corpos volumosos. Para serem belas, talvez devessem apresentar cinturas mais delicadas e delgadas, o que surtiria no personagem um sentimento de graciosidade. Quanto aos homens, Jonathan Harker os identificou com aspecto bárbaro, como se fossem ladrões de estrada. Faltava uma natural-afirmação aos pacatos moradores da Romênia. Percebe-se que Jonathan, um viajante inglês, durante a caracterização que faz dessas pessoas demonstra valores e ideais da sua própria cultura, uma cultura ocidental, racional, produto do iluminismo, da revolução industrial e centrada na superioridade do homem sobre a mulher, do inglês branco sobre outras etnias.

Nesse estágio da narrativa, Jonathan Harker ainda não sabe, mas enviará para Londres o conde Drácula, um vampiro maligno, uma infecção, um flagelo. Londres, uma das grandes capitais da Europa, participante do projeto das luzes, território Ocidental rumo à higienização, à escolarização, à normalização, à libertação de doenças e de calamidades. O outro, o mal, vem do Oriente para infestar, corromper e desordenar.

Sobre o outro e a identidade, Guacira Lopes Louro constata que:

 

“A afirmação da identidade implica sempre a demarcação e a negação do seu oposto, que é constituído como sua diferença. Esseoutro’ permanece, contudo, indispensável. A identidade negada é constitutiva do sujeito, fornece-lhe o limite e a coerência e, ao mesmo tempo, assombra-o com a instabilidade.”

 

Sem dúvida, Jonathan Harker é assombrado pela visão do novo, aquilo que lhe é estranho, diferente de sua maneira de se postar no cotidiano. Depois de observar e interagir com os indivíduos daquela terra selvagem, o protagonista chega ao castelo. É nesse ambiente medieval caracterizado pelo sobrenatural, o castelo em ruínas e repleto de sombras, que Stoker fará com que Jonathan conheça o próprio conde Drácula e as suas três amantes vampiras.

Drácula é descrito com olhos dotados de um intenso brilho, a boca de um aspecto cruel, lábios extremamente vermelhos, dentes muito afiados de uma brancura de marfim, bigode e barba, face aquilina, arcada nasal bastante fina, orelhas pontiagudas na parte superior, mandíbula larga e forte, mãos brancas com uma tenaz de aço, aspecto tosco e pesado, extremidades dos dedos achatadas e deformadas, tufos pilosos no centro da palma, unhas longas e pontiagudas, mau hálito e extraordinária palidez.

As três vampiras eram jovens, damas do mais fino trato. Elas possuíam dentes de um branco fulgurante que se assemelhava a pérola, lábios rubros e voluptuosos dos quais Harker compulsoriamente implorou beijos, risada argentina e musical de intolerável percussão. Duas delas tinham tez escura, nariz aquilino, olhos grandes e matizados de vermelho. A terceira era de rara beleza, de acordo com Harker “o que de mais belo possa se imaginar”, cabelos longos e dourados, lindos olhos de tom safira. Hálito doce e cálido, boca que “ressumava um sabor amargo, um gosto acre, que tresandava a sangue”, e nos olhos desvairada voluptuosidade.

Segundo Guacira Lopes Louro “ as práticas discursivas fazem com que aspectos dos corpos se convertam em definidores de gênero e de sexualidade e, como consequência, acabem por se converter em definidores dos sujeitos”. A partir da narrativa de Stoker é possível averiguar as diferenças entre Drácula e as vampiras. A boca de Drácula tem um aspecto cruel, enquanto a das vampiras é rubra e voluptuosa, indicando um caráter de sedução do qual Harker não escapa. Drácula tem na mão uma tenaz de aço, atributo de força. Possui mau hálito, mãos asquerosas e unhas pontiagudas. Sua descrição beira o limite entre o humano e o monstruoso. Drácula é forte, asqueroso e cruel. As vampiras, belas, sedutoras e perigosas.

Stoker escreveu Drácula, no século XIX. Inserido nesse contexto cultural e histórico, os personagens que ele criou correspondiam a modelos desejados e a modelos que a sociedade civilizada deveria combater. As vampiras do castelo possuíam uma sexualidade perigosa de “desvairada voluptuosidadeque não correspondia ao papel de uma mulher decente, capaz de cuidar do homem e educar os filhos dentro de preceitos da moral e dos bons costumes da época.

Em relação a discursos da moral, da lei e da igreja para disciplinar a sexualidade, é interessante essa observação de Andrezza Rodrigues sobre o que marca o sexo no século XIX:

 

“é justamente o fato de se falar sobre ele como em nenhum outro século; o sexo foi estudado e medido e produziu-se uma literatura do sexo correto, medicalizado. Cria-se em seu entorno uma biologia da reprodução, esta caindo para um campo de outros poderes vindouros, como o medo do mal venéreo e deste para a higiene.”

 

A literatura, além de um prazer, um passatempo ou diversão, dependendo é claro de quem , promoveria também a moralização da sociedade. Um livro de horror, repleto desses discursos, através do medo, do grotesco, do impuro, da imundície e do bizarro, seria capaz de barrar, tolher e coibir, ao menos em parte, ações que não correspondessem à moral vigente.

Antes que Harker seja consumido pela sede de sangue das três vampiras, Drácula intervém com violência. Para conter o ímpeto selvagem de suas concubinas dá a elas um presente. Essa passagem é descrita no Diário de Jonathan assim:

 

“(...) um saco que fora lançado sobre o assoalho e dentro do qual algo se debatia, como se nele ocultasse alguma coisa viva. (...) Uma das mulheres se adiantou e abriu o pequeno fardo. Se meus ouvidos não me enganaram, percebi vindo de um débil suspiro, acompanhado de um gemido, como se se tratasse de uma criança semiasfixiada. Num instante, as três mulheres formaram uma roda, enquanto eu estremecia de horror”.

 

Considero essa cena uma pista muito interessante para a própria origem do mito do vampiro. Decorre de um passado remoto, do nascimento das primeiras civilizações, mais precisamente no Crescente Fértil. Três demônios femininos podem estar conectados a essa origem: Lamastu, demônio acadiano, responsável pelas doenças infantis; Lilitu, demônio da babilônia, representante da noite; e Lilith. Lilith corresponde a duas tradições, à popular judaica, do Antigo Testamento, e à do Talmude. Na primeira, é conhecida como a noturna e considerada um fantasma sugador de sangue. Na segunda, é vista como um ser maligno e a primeira mulher de Adão. Seu animal sagrado é a coruja.

Agrupando algumas características importantes das três figuras temos: a ligação com a coruja, a noite, a propriedade de disseminar doenças infantis e sugar sangue. A mulher, na antiguidade, seria vista como a responsável pela vida dos recém-nascidos e das crianças. Quando a morte de uma criança ocorria, um demônio feminino era o causador. Essa explicação diminui a responsabilidade de uma mãe, até mesmo de um pai, mas continua sendo a mulher a fonte da culpa. As mulheres, nesse contexto, também estão associadas à noite, naquilo que é a inversão do dia, e à falta dos bons valores. As vampiras do castelo são uma representação desse estigma, desse mal, dessa corrupção.

As lâmias da antiga Grécia parecem ter herdado alguns desses elementos: raptavam crianças e sugavam seu sangue. Possuíam um corpo horrível, a metade superior mulher e a metade inferior serpente, um ser híbrido. Outros relatos dizem que elas adquiriram o poder de se transformar em belas mulheres e passaram a seduzir homens jovens. Ou seja, seduzir homens jovens e beber o sangue de crianças foi exatamente o papel atribuído às concubinas de Drácula.

A cultura em torno desses três demônios femininos se alastra pela Grécia e pela Roma antiga. Com o passar do tempo, na Europa Medieval e Moderna, outros seres bizarros criados pela imaginação popular vão delineando o que viria a ser o vampiro moderno, tipo de personagem consagrado por Bram Stoker.

Jonathan Harker continua seu relato, depois de ter sobrevivido àquele encontro: “seria o meu próprio corpo lugubremente banqueteado, num festim bem semelhante, pelas três fúrias, também ávidas de sangue”. Stoker invoca ao texto a figura das fúrias, personagens mitológicas que em Roma, segundo o pesquisador Manfred Lurker eram nomeadas assim:

 

“Alecto (a impiedosa), Tisífone (a que vinga os assassinatos), e Megera (a invejosa). Com suas cabeças adornadas por serpentes, manipulando tochas ameaçadoras, levantavam-se do mundo inferior para perseguir todos os pecadores (...). Em Roma eram conhecidas como Furiae (loucas)”.

 

Loucas, invejosas, vingativas e impiedosas, assim eram as Furiae. As vampiras do castelo, assim como outras mulheres monstruosas ou demoníacas da mitologia, carregam em si todo o mal, todo o pecado. Suas características de gênero são construídas a partir da cultura e da história, através do tempo e dos diferentes espaços geográficos.

Em Drácula, mulheres e homens da Inglaterra vitoriana se veem diante de um mal terrível e monstruoso, o outro, criatura desconhecida e ameaçadora que vem do Oriente para infectar o Ocidente cristão, branco, racional e patriarcal. Essa é uma obra que deve frequentar a cabeceira daqueles que apreciam uma boa leitura. E, também, daqueles que gostam de investigar o cotidiano de uma época, suas representações e relacionamentos de gênero.
Sugestões de Leitura

BURKE, Peter (org). A escrita da história: novas perspectivas. SCOTT, Joan. História das mulheres. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, História e Educação: construção e desconstrução. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n.2, jul./dez. 1995, p. 101-132.

_______ Um corpo estranho – ensaios sobre a sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

LECOUTEX, Claude. História dos vampiros: autópsia de um mito. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

LURKER, Manfred. Dicionário de deuses e demônios. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

MELTON, J. Gordon. O livro dos vampiros: a enciclopédia dos mortos-vivos. São Paulo: Makron Books, 1995.

RODRIGUES. Andrezza Christina Ferreira. Drácula, um vampiro vitoriano: O Discurso Moderno no Romance de Bram Stoker. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. 08 a 12 de setembro de 2008.

STOKER, Bram. Drácula. São Paulo: Círculo do Livro, 1988.

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