Bollywood,
“Item girls” e feminismo: o sexo que vende
Augusta
Silveira
Graduanda em História na UFRGS
A indústria cinematográfica com sede
em Mumbai (Bombay), popularmente chamada de Bollywood, produz filmes em uma das
diversas línguas oficiais da Índia, o Hindi. Naturalmente, o cinema Hindi é
somente uma parte dos cerca de mil filmes produzidos por ano no país, embora
seja a maior e mais popular vertente do cinema indiano. O fenômeno Bollywood
atingiu o ocidente tardiamente, a partir dos anos 2000, e embora alguém possa
afirmar que foram os valores ocidentais que estimularam a crítica feminista ao
cinema Hindi, boa parte da reflexão sobre gênero vem das próprias ativistas
indianas.
Uma característica marcante dos
filmes de Bollywood é a de procurar atingir todo o tipo de público, incluindo
no cinema Hindi elementos que maximizem os lucros de bilheteria. Melodramas
focados em relações familiares, triângulos amorosos e paixões proibidas fazem
parte do plot das películas com apelo
às massas indianas. A música e a dança, porém, podem muitas vezes determinar o
sucesso ou um fracasso de um filme. A maioria das produções de Bollywood é do
gênero musical, portanto, a trilha sonora (normalmente lançada antes do filme, para
atrair o público) e os números de dança são elementos importantes para aumentar
a bilheteria de filmes que às vezes não contam com um roteiro atraente.
Enquanto boa parte dos números
musicais é inserida dentro da própria história, cantada pelos protagonistas com
algum propósito de continuidade, outros usam o antigo recurso dos “Item
numbers”. A fórmula é simples: uma mulher jovem e atraente, a “Item girl”,
dança e dubla uma das músicas da película, normalmente desconectada da história
central, para fins de marketing (ou assim dizem os produtores).
A tradição das Item girls em
Bollywood se inicia a partir dos anos quarenta com Vyjayanthimala e Padmini,
atrizes conhecidas por seus números de dança semi-clássica nos filmes da época.
Mais tarde, a figura da “vamp”, introduzida por Cuckoo e imortalizada por sua protégé Helen, foi predominante até o
final dos anos setenta. A vamp era, normalmente, uma dançarina de cabaret ou
uma cortesã, cantava abertamente sobre sexualidade, usava roupas reveladoras,
bebia e fumava em seus números; tudo que faltava à heroína. A partir dos anos
oitenta, uma geração de atrizes passa a incorporar os Item numbers em seu
repertório, extinguindo os padrões moral e socialmente aceitos para a heroína,
dando margem para coreografias que exploravam a sensualidade da protagonista.
A evolução do Item number ao longo
das décadas fez com que fossem investidos cada vez mais tempo e capital na
produção desse número. Atualmente, um Item number costuma trazer uma
coreografia elaborada, um cenário espetacular, um extenso contingente de
dançarinos e diversas trocas de figurino, tudo em busca de um bom “repeat
value” para a película, ou seja, que exige ser vista mais de uma vez.
Analisando as atrizes do cinema Hindi
a partir dos anos 2000, é quase impossível encontrar alguma que não tenha tido
um Item number em sua carreira. Aishwarya Rai, Kareena Kapoor, Katrina Kaif, entre
outras atrizes menores, todas cederam à publicidade e popularidade que traz uma
performance especial em um filme. O Item number é visto muitas vezes como um
atalho para o sucesso e o estrelato em Bollywood, um recurso explorado por
jovens atrizes que buscam um papel mais proeminente em outras películas e uma
maior exposição na mídia.
A crítica feminista aos Item numbers
passa, naturalmente, pela objetificação do corpo feminino para fins comerciais.
As Item girls, qualquer seja o lugar de sua performance, costumam dançar para
os olhares masculinos presentes na cena, transformando um suposto numero
musical em uma demonstração de sua ousadia (sua personalidade tradicionalmente
se opõe à da heroína).
Em 2005, o debate tornou-se mais
direcionado após o banimento dos bares de dança em Mumbai. Apesar do grupo de
ativistas contrários, a medida foi aprovada com unanimidade, sob o pretexto de
um “policiamento moral” do “entretenimento” provido pelas dançarinas. Os
números apresentados por essas dançarinas, a maioria mulheres jovens de baixa
renda, são imitações dos famosos Item numbers de Bollywood.
A questão proposta pelos opositores da
medida é que enquanto a “vulgaridade” das dançarinas de bares era o motivo do
fechamento do estabelecimento, os Item numbers imitados por elas estavam nas
salas de cinema de toda a Índia. A conclusão atingida por esses ativistas
coloca uma pergunta em jogo: se as performances nos bares e no cinema Hindi
vendem a mesma imagem da mulher como objeto sexual de admiração, por que se
questiona apenas a validade da performance da periferia, de bares pobres?
Pode-se dizer, portanto, que há uma glamourização da mulher como objeto sexual da
admiração masculina no cinema Hindi.
Outras críticas tratam do Item
number como uma incitação à violência contra a mulher, visto que um extenso
número de performances se resume a um homem que insiste em provocar a Item girl
até que, no fim, ela cede às suas investidas. Esse tipo de Item number faz
parte do mito da mulher que “finge ser difícil” apenas para provocar seu par
masculino. A idéia transmitida por esse tipo de música é que sempre um “não” de
uma mulher pode significar um “talvez”, conseguido através de muita insistência
e, porque não, abuso.
Ainda existem outros tipos de
crítica, normalmente relacionados à como as mulheres foram e ainda são
retratadas no cinema Hindi. Embora haja uma evolução nesse sentido, mostrando
cada vez mais mulheres indianas fora do âmbito privado, muitos filmes ainda
trazem o aspecto da submissão e idolatria ao marido como características
valiosas da perfeita esposa. Bollywood, como uma indústria centrada nos
protagonistas masculinos, ainda coloca suas personagens femininas à margem da
tradição indiana, criando o estereótipo irreal da mulher que, embora possa usar
roupas ocidentais, precisa provar sua “indianidade” para ser digna de valor.
Por fim, embora a discussão esteja
se popularizando, a crítica feminista às produções Bollywoodianas tem muito a
crescer. Talvez, a saída seja relacionar a cultura criada pelo cinema Hindi às
situações precárias que se encontram as mulheres indianas em seu cotidiano.
Qual a relação direta entre os estupros coletivos na Índia e os Item numbers?
Talvez nenhuma. Porém, analisar como a objetificação da mulher e a criação de
uma tradição cinematográfica que insiste em retratá-las como um prêmio a ser
conquistado ou um produto a ser vendido influencia a criação e perpetuação de
práticas sociais pode oferecer um ponto de partida para uma discussão maior
sobre gênero.
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