domingo, 15 de setembro de 2013

Bollywood

Bollywood, “Item girls” e feminismo: o sexo que vende
Augusta Silveira
Graduanda em História na UFRGS
            A indústria cinematográfica com sede em Mumbai (Bombay), popularmente chamada de Bollywood, produz filmes em uma das diversas línguas oficiais da Índia, o Hindi. Naturalmente, o cinema Hindi é somente uma parte dos cerca de mil filmes produzidos por ano no país, embora seja a maior e mais popular vertente do cinema indiano. O fenômeno Bollywood atingiu o ocidente tardiamente, a partir dos anos 2000, e embora alguém possa afirmar que foram os valores ocidentais que estimularam a crítica feminista ao cinema Hindi, boa parte da reflexão sobre gênero vem das próprias ativistas indianas.
            Uma característica marcante dos filmes de Bollywood é a de procurar atingir todo o tipo de público, incluindo no cinema Hindi elementos que maximizem os lucros de bilheteria. Melodramas focados em relações familiares, triângulos amorosos e paixões proibidas fazem parte do plot das películas com apelo às massas indianas. A música e a dança, porém, podem muitas vezes determinar o sucesso ou um fracasso de um filme. A maioria das produções de Bollywood é do gênero musical, portanto, a trilha sonora (normalmente lançada antes do filme, para atrair o público) e os números de dança são elementos importantes para aumentar a bilheteria de filmes que às vezes não contam com um roteiro atraente.
            Enquanto boa parte dos números musicais é inserida dentro da própria história, cantada pelos protagonistas com algum propósito de continuidade, outros usam o antigo recurso dos “Item numbers”. A fórmula é simples: uma mulher jovem e atraente, a “Item girl”, dança e dubla uma das músicas da película, normalmente desconectada da história central, para fins de marketing (ou assim dizem os produtores).
            A tradição das Item girls em Bollywood se inicia a partir dos anos quarenta com Vyjayanthimala e Padmini, atrizes conhecidas por seus números de dança semi-clássica nos filmes da época. Mais tarde, a figura da “vamp”, introduzida por Cuckoo e imortalizada por sua protégé Helen, foi predominante até o final dos anos setenta. A vamp era, normalmente, uma dançarina de cabaret ou uma cortesã, cantava abertamente sobre sexualidade, usava roupas reveladoras, bebia e fumava em seus números; tudo que faltava à heroína. A partir dos anos oitenta, uma geração de atrizes passa a incorporar os Item numbers em seu repertório, extinguindo os padrões moral e socialmente aceitos para a heroína, dando margem para coreografias que exploravam a sensualidade da protagonista.
 
            A evolução do Item number ao longo das décadas fez com que fossem investidos cada vez mais tempo e capital na produção desse número. Atualmente, um Item number costuma trazer uma coreografia elaborada, um cenário espetacular, um extenso contingente de dançarinos e diversas trocas de figurino, tudo em busca de um bom “repeat value” para a película, ou seja, que exige ser vista mais de uma vez.
            Analisando as atrizes do cinema Hindi a partir dos anos 2000, é quase impossível encontrar alguma que não tenha tido um Item number em sua carreira. Aishwarya Rai, Kareena Kapoor, Katrina Kaif, entre outras atrizes menores, todas cederam à publicidade e popularidade que traz uma performance especial em um filme. O Item number é visto muitas vezes como um atalho para o sucesso e o estrelato em Bollywood, um recurso explorado por jovens atrizes que buscam um papel mais proeminente em outras películas e uma maior exposição na mídia.


 
 
            A crítica feminista aos Item numbers passa, naturalmente, pela objetificação do corpo feminino para fins comerciais. As Item girls, qualquer seja o lugar de sua performance, costumam dançar para os olhares masculinos presentes na cena, transformando um suposto numero musical em uma demonstração de sua ousadia (sua personalidade tradicionalmente se opõe à da heroína).
            Em 2005, o debate tornou-se mais direcionado após o banimento dos bares de dança em Mumbai. Apesar do grupo de ativistas contrários, a medida foi aprovada com unanimidade, sob o pretexto de um “policiamento moral” do “entretenimento” provido pelas dançarinas. Os números apresentados por essas dançarinas, a maioria mulheres jovens de baixa renda, são imitações dos famosos Item numbers de Bollywood.
A questão proposta pelos opositores da medida é que enquanto a “vulgaridade” das dançarinas de bares era o motivo do fechamento do estabelecimento, os Item numbers imitados por elas estavam nas salas de cinema de toda a Índia. A conclusão atingida por esses ativistas coloca uma pergunta em jogo: se as performances nos bares e no cinema Hindi vendem a mesma imagem da mulher como objeto sexual de admiração, por que se questiona apenas a validade da performance da periferia, de bares pobres? Pode-se dizer, portanto, que há uma glamourização da mulher como objeto sexual da admiração masculina no cinema Hindi.
            Outras críticas tratam do Item number como uma incitação à violência contra a mulher, visto que um extenso número de performances se resume a um homem que insiste em provocar a Item girl até que, no fim, ela cede às suas investidas. Esse tipo de Item number faz parte do mito da mulher que “finge ser difícil” apenas para provocar seu par masculino. A idéia transmitida por esse tipo de música é que sempre um “não” de uma mulher pode significar um “talvez”, conseguido através de muita insistência e, porque não, abuso.
            Ainda existem outros tipos de crítica, normalmente relacionados à como as mulheres foram e ainda são retratadas no cinema Hindi. Embora haja uma evolução nesse sentido, mostrando cada vez mais mulheres indianas fora do âmbito privado, muitos filmes ainda trazem o aspecto da submissão e idolatria ao marido como características valiosas da perfeita esposa. Bollywood, como uma indústria centrada nos protagonistas masculinos, ainda coloca suas personagens femininas à margem da tradição indiana, criando o estereótipo irreal da mulher que, embora possa usar roupas ocidentais, precisa provar sua “indianidade” para ser digna de valor.
            Por fim, embora a discussão esteja se popularizando, a crítica feminista às produções Bollywoodianas tem muito a crescer. Talvez, a saída seja relacionar a cultura criada pelo cinema Hindi às situações precárias que se encontram as mulheres indianas em seu cotidiano. Qual a relação direta entre os estupros coletivos na Índia e os Item numbers? Talvez nenhuma. Porém, analisar como a objetificação da mulher e a criação de uma tradição cinematográfica que insiste em retratá-las como um prêmio a ser conquistado ou um produto a ser vendido influencia a criação e perpetuação de práticas sociais pode oferecer um ponto de partida para uma discussão maior sobre gênero.

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